Notícia  /  04.07.2019

Na opinião de Manuel Bôa de Jesus

Jogos Olímpicos… em Pequim. Apontamentos


Antes de mais convirá analisar no contexto mundial a realização dos Jogos Olímpicos no final de cada Olimpíada no que respeita à formulação «laboral» dos atletas.


Numa fase inicial e quando os Jogos Olímpicos eram coincidentes com as feiras mundiais, imperava um profissionalismo mais ou menos encoberto que ajudou à divulgação e promoção das modalidades olímpicas, embora afastadas dos ideais de Pierre de Coubertin. Passada que foi esta fase inicial entrou-se numa fase amadora e em que se procurou consubstanciar os principais ideais olímpicos de Coubertin. Posteriormente, com os Jogos mais universalizados e com a participação feminina a desenvolver-se, por volta dos anos 50/60, chegámos a um momento em que o profissionalismo encapotado apareceu e deixou de haver um total amadorismo. A partir dos Jogos de 1988 acabaram os atletas/bombeiros, os atletas/militares, os atletas/«nobres»: o acesso aos Jogos Olímpicos não dependia só do cumprimento dos mínimos de cada modalidade ou da boa-vontade dos comités olímpicos nacionais, mas sim da qualidade e nível desportivo (ao cumprir mínimos progressivamente mais difíceis) e sobretudo, das possibilidades financeiras dos comités nacionais ou de cada país, especialmente quando os atletas e federações nacionais não tinham essa capacidade financeira para o percurso desportivo durante a Olimpíada. Os profissionais foram então chamados a participar nos Jogos Olímpicos, com algumas exceções.


Os Jogos Olímpicos foram sendo realizados em conformidade com a Carta Olímpica, que na sua própria evolução sempre condicionou e enquadrou quer os comités de organização local (COL) quer as missões olímpicas nacionais. Esta influência surge através das linhas programáticas e linhas orientadoras dos «cadernos de encargos» muito discutidos aquando das respetivas candidaturas. Estas condicionantes e orientações são sobretudo introduzidas nas assembleias gerais do Comité Olímpico Internacional e posteriormente aplicadas na organização dos Jogos e refletidas no dossiê e no manual dos chefes de missão.


Não devemos esquecer que os Jogos Olímpicos são organizados ao nível das cidades e que pela sua dimensão e impacto económico requerem o aval dos governos regionais e nacionais, quando é caso disso, e em função da respetiva organização política. No entanto, é claro que a candidatura é apresentada pelos comités olímpicos nacionais, o que desde logo implica um processo negocial nacional anterior. Podemos dizer que todos os Jogos Olímpicos têm princípios semelhantes, mas todos são diferentes em função da respetiva cidade, do país de localização, do programa desportivo e cultural e das orientações inovadoras e globais do COI e das federações internacionais das modalidades envolvidas.


Assim foi em Pequim.


Durante os quatro anos da Olimpíada é estabelecido um triângulo organizacional entre organização administrativa profissional do Comité Olímpico Internacional, o comité organizador local e os comités olímpicos nacionais através das respetivas missões nacionais. No mínimo, um ano antes do evento, é realizada uma reunião geral e global prévia, seguindo-se reuniões por continentes onde se começa a preparar e a definir as listas para os participantes, atletas e oficiais.


Estas reuniões prévias não incluem outras reuniões bilaterais com representantes de modalidades participantes para análise das instalações desportivas ou do seu estado de construção (Aldeia Olímpica em particular) e para o conhecimento de percursos desportivos como os da maratona e do ciclismo de estrada.


No caso de Pequim assim foi e assim será para os próximos Jogos de Tóquio.


Existem neste momento três tipos de programa de Jogos Olímpicos. Os Jogos Olímpicos de Verão, os Jogos Olímpicos de Inverno, praticamente desconhecidos dos portugueses, dado o pouco conhecimento e prática das respetivas modalidades, e os Jogos Olímpicos da Juventude, que têm uma grande aceitação entre a nossa juventude desportista.


Os Jogos da XXIX Olimpíada foram realizados em Pequim (Beijing), com exceção da vela, realizada em Qingdao, e do hipismo, realizado em Hong Kong. Convém não esquecer que o futebol é sempre realizado em várias cidades nas suas fases de apuramento.


Desde logo isto significa que para os Jogos Olímpicos de Pequim existiram três aldeias olímpicas e as dificuldades acrescidas para seguir e preparar as respetivas modalidades. Devemos ainda referir o caso do triatlo, que funcionou e estabeleceu alojamento em local fora da Aldeia Olímpica e nos arredores de Pequim.


Uma das maiores dificuldades na organização foi sem sombra de dúvida a da comunicação, sobretudo se tivermos em conta que os «smartphones» estavam numa fase inicial e não existiam aplicações de tradução para o chinês / mandarim. A organização local (BOCOG, sigla em inglês) disponibilizou telemóveis Samsung, um dos patrocinadores principais do COI, para o chefe de missão e o adjunto poderem contactar com a organização. A nossa própria missão também distribuiu telemóveis pelos chefes de equipa de cada modalidade, secretariado, equipas médica, de relações públicas e de marketing e adida olímpica.


Todos os Jogos Olímpicos são iguais e todos são diferentes.


Por exemplo, os chineses são muito supersticiosos e por isso os Jogos de Pequim começaram no dia 8/8/08 às 8 horas e 8 minutos. E porquê? Devido a semelhanças fonéticas, a palavra «oito» em mandarim associa o número às ideias de sorte, prosperidade e sucesso. A perfeita simetria, o infinito. Ao contrário, a palavra «quatro» é foneticamente parecida com «morte», pelo que ninguém quer esse número. Na China, muitos prédios não têm escrito o quarto piso, embora naturalmente ele exista. Nas sociedades ocidentais é muitas vezes o 13 o número associado ao azar.


Mas voltemos à comunicação, para dar outro exemplo. As dificuldades de comunicação agravavam-se quando alguns voluntários que acompanhavam a missão diziam que falavam inglês mas não tínhamos possibilidades de compreender «um tal inglês»; ao contrário, os possíveis candidatos ocidentais a voluntários teriam de saber mandarim e pagar o seu alojamento em Pequim, ou pelo menos arranjar alojamento.


As cartas de condução são um dos aspetos pouco referidos e que também têm que ver com a comunicação / transportes. As cartas de condução dos países ocidentais não são válidas na China. Para ter uma permissão de condução chinesa é necessário fazer um período de aprendizagem e um exame…. em mandarim. Tais princípios tornam inviável o aluguer de viaturas sem ser com condutor. O que na prática é extremamente dispendioso. Para os atletas e chefes de equipa havia sempre a central de transportes em autocarro, que com frequência não partiam de acordo com os horários previstos. Mas os corredores olímpicos / bus eram sempre respeitados e vigiados pela polícia de trânsito.


Como é sabido, o número de atletas da missão determina um conjunto de quotas que vão desde os alojamentos ao número de oficiais, ao número de assistentes locais, às áreas de armazenamento, ao número de viaturas alocadas a cada missão etc… Uma particularidade na sequência do que foi dito: todas as viaturas tinham condutor, que não podiam ser dispensados e estavam concentrados numa central ao lado da Aldeia Olímpica. Como era habitual, ninguém falava inglês e muitos nem sequer eram de Pequim! Para comunicar com os condutores, mais do que mostrar os mapas da organização numa espécie de linguagem gestual, era necessário um intérprete. No nosso caso tivemos a sorte de descobrir e escolher a Doutora Paula Ferreira, alta funcionária da Embaixada Portuguesa em Pequim, que, dominando o mandarim e com formação em Desporto, nos permitia ultrapassar as dificuldades imediatas nas comunicações sempre que necessário.


De acordo com os princípios definidos pelo COI e pelo BOCOG, é atribuído um espaço de alojamento para cada missão em função do número de atletas e oficiais. Esse passa a ser o espaço central da missão e é gerido e preparado pelos próprios oficiais, no nosso caso do COP. Tal significa preparar, no mínimo em uma semana, uma espécie de «pequeno hotel». E dizemos «pequeno» porque ele nunca aloja a totalidade da delegação. É preciso fazer a distribuição dos quartos em função das modalidades, do sexo, dos oficiais e sobretudo do planeamento das competições, para poder prever as saídas e entradas, normalmente a meio dos 15 dias dos Jogos. É preciso prever ainda nestes espaços, zonas de lazer, serviços médicos e de fisioterapia, um secretariado, armazenamento de equipamentos, além da marca exterior deste «pequeno hotel», a qual é feita principalmente com as bandeiras nacionais. Tudo isto corresponde, se não for alugado localmente, ao transporte de um contentor.


Um outro aspeto que parece de pouca importância é a entrada de elementos de outras delegações, amigos dos nossos atletas ou oficiais e que os procuram. É necessário ter bom senso e criar regras que, sem impedir o acesso dos amigos, não ponham em causa a segurança.


Segurança foi um dos temas centrais dos Jogos Olímpicos de Pequim. Para além dos procedimentos habituais de controlo de pessoas, bens e viaturas, existiu aquilo que já se denominava de cibersegurança. Para ter acesso à internet tivemos de alugar «rooters» para funcionarmos com «wi-fi», mas o sistema com alguma frequência ia abaixo e ficávamos sem acesso. Soubemos mais tarde que, segundo as autoridades, existiram muitos ciberataques ao sistema informático dos Jogos. Seria? Nunca o conseguimos confirmar.


Os Jogos Olímpicos de Pequim tiveram um momento grave em que as tréguas olímpicas foram quebradas pela Rússia ao invadir a Geórgia. Tal facto criou um clima de tensão grande, mas a intervenção do COI permitiu a continuação da permanência da missão georgiana e do convívio entre todas as delegações.


Muito mais haverá a dizer, quer das particularidades dos Jogos Olímpicos quer especificamente em relação aos Jogos de Pequim.


A experiência, o conhecimento e o bom senso são fatores comuns a toda a organização de uma missão. Esta não pode ser baseada na individualidade mas sim numa equipa habituada a trabalhar em conjunto e que respeite os valores de base do Olimpismo: Excelência, Amizade e Respeito.



João Manuel da Bôa de Jesus é professor universitário aposentado, tendo lecionado no Instituto Nacional de Educação Física (INEF), na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro  e na Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física do Porto. Licenciado em Educação Física pelo INEF e mestre em Gestão de Organizações Desportivas (Memos), foi presidente da Federação de Ginástica de Portugal entre 2004 e 2011, depois de ter presidido a Comissão Organizadora da 12.ª Gimnaestrada (Lisboa, 2003). Foi o chefe da missão portuguesa aos Jogos Olímpicos de Pequim (2008). Foi também membro honorário da União Europeia de Ginástica e consultor do Conselho da Europa no domínio do Desporto entre 1998 e 2002. É membro da AOP desde 2008, integrando a respetiva Comissão de Cultura e Colecionismo.


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