Notícia  /  14.05.2019

Na opinião de António Gentil Martins

Olimpismo

O conceito de desporto amador, concebido como a prática do desporto pelo desporto, recuperado por Pierre de Coubertin, está em perigo, como aliás aconteceu na antiga Grécia.

Não se pode esquecer, olhando a história, que a infiltração de profissionais entre os competidores, destruindo o ideal de honra e glória que dera aos Jogos a sua mística e trazendo consigo a febre do lucro, levou à destruição dos ideais sagrados, com o florescimento da corrupção, de tal modo que os Jogos Olímpicos da antiga Grécia acabaram por desaparecer em 393 d.C., no tempo do imperador romano Teodósio I, mais de mil anos após o seu início…

Para Pierre de Coubertin, o espírito olímpico era fundamentalmente uma filosofia de vida, promovendo e associando globalmente as qualidades do corpo e do espírito, procurando ciar um estilo de vida baseado no prazer conseguido pelo esforço, no valor educacional dos bons exemplos e no respeito dos princípios éticos fundamentais e universais. Procurava assim promover a criação de uma sociedade de paz, preocupada com a preservação da dignidade humana.

O padre católico Henry Didon referiu pela primeira vez o moto Citius, Altius, Fortius (mais longe, mais alto, mais forte), consagrado nos segundos Jogos, em 1900.

Nesse mesmo ano, o bispo Talbot afirmou (o que mais tarde foi erradamente atribuído a Coubertin) que, nos Jogos Olímpicos, o mais importante é participar e não é vencer. O realmente importante era não a vitória em si mesma, mas sim o que levava a ter vencido. Algumas semanas depois, Coubertin diria que o mais importante na vida não é o vencer sem esforço. O essencial não era vencer, mas era ter lutado bem, era ter dado o seu melhor.

Afirmava Coubertin que divulgar esses princípios era contribuir para uma humanidade mais corajosa, mais generosa, mais justa e mais forte, promotora da fraternidade entre as nações e defensora do amadorismo, ou seja, o esforço pelo seu mérito próprio e não como factor de lucro financeiro. Foi este espirito de fraternidade, que na antiga Grécia se manifestava pela chamada Trégua Sagrada (fazendo cessar temporariamente os combates entre as cidade rivais), que permitiu ver em Sydney (2000) uma representação unida das duas Coreias (Sul e Norte) e, antes, ter visto também uma equipa unida das duas Alemanhas (Leste e Ocidente).

Coubertin era de facto elitista e nos primeiros Jogos, em 1896, apenas homens participaram e, em certas modalidades, apenas os com mais recursos podiam dar-se ao luxo de concorrer. Felizmente, progressivamente as mulheres foram tomando o lugar a que tinham direito e por outro lado os atletas das modalidades mais dispendiosas passaram a ser apoiados na sua preparação.

Contudo, o desporto (comprovadamente promotor da saúde), como conceito e ideal de vida e não como meio de vida (o que legitimamente os profissionais fazem, até porque não podemos esquecer muitos dos fantásticos artistas de circo…), sofreu uma profunda transformação, sobretudo após os Jogos Olímpicos de Barcelona e a presidência do Comité Olímpico Internacional por António Samaranch. Os clássicos Jogos Olímpicos transformaram-se num espectáculo progressivamente mais mediático e lucrativo, apoiado pelo impacto permitido pelas novas tecnologias da comunicação, nomeadamente a televisão.

Na antiguidade, os Jogos Olímpicos duraram cerca de mil anos. Agora, tudo se passa mais depressa. O norte-americano Jim Thorpe, em 1912 (quintos Jogos Olímpicos), perdeu a sua medalha de ouro, de vencedor do decatlo, porque anteriormente tinha ganho alguns cobres na sua terra natal (os EUA) a jogar beisebol. Paavo Nurmi foi impedido de participar na maratona em 1932, em Los Angeles, por ter recebido algum dinheiro da sua participação em corridas da maratona (na Alemanha e nos Estados Unidos) após a sua vitória em 1928. Havia então o culto e o respeito, mesmo excessivo, pelo amadorismo. Porém, já em Seul, em 1988, óbvios profissionais como Carl Lewis e Sergei Bubka participaram nos Jogos Olímpicos. Mais recentemente, em 1992, Michael Jordan (no basquetebol), em 1996, Andre Agassi (no ténis), em 2004, Cristiano Ronaldo (no futebol) fizeram o mesmo.

Desmistificado o antigo mito do desporto amador, com o seu esforço oferecido aos deuses do Olimpo, é necessário pensar se ainda serão válidos os princípios e ideais propostos por Pierre de Coubertin ao fazer reviver os Jogos. Pensamos que sim e que o COI e os comités nacionais terão, de uma vez por todas e sem ambiguidades, de estabelecer a fronteira entre desporto amador e profissional.

Pensamos não ser o lucro financeiro o objectivo do Olimpismo, mas sim o colocar sempre, e em todos os lugares, o desporto ao serviço da saúde e da humanidade, procurando encorajar o estabelecimento de uma sociedade pacífica, preocupada com a preservação da fraternidade e da dignidade humana.

Parece lógico, para evitar discriminações pela capacidade financeira, que os atletas possam ter apoios desse tipo, mas apenas na medida em que isso se relaciona com a sua preparação para participar nos Jogos.

Contudo, para poder participar nos Jogos, em nenhuma altura deve o atleta obter lucro pela sua participação, para além do que o próprio Código de Ética co Comité Olímpico Internacional prevê no ponto 2 do tema B (Integridade) e que diz textualmente: «Só prendas de valor nominal, de acordo com os costumes locais prevalecentes, podem ser dadas ou recebidas pelos participantes olímpicos, como sinal de respeito ou amizade. Qualquer outra prenda deverá ser entregue à organização de que o beneficiário é membro.»

Infelizmente, a mais recente decisão do Comité Olímpico Internacional, que a imprensa indica ir «reforçar as suas relações com as ligas profissionais para garantir que os melhores desportistas de todas as modalidades estejam nos Jogos Olímpicos», leva-nos a pensar o pior. E até a considerar que deverão deixar de existir os campeonatos do mundo para as modalidades que poderão ficar incluídas nos futuros Jogos Olímpicos (e que o COI pretende aumentar…).

Como conciliar esta decisão com o Código de Ética em vigor e que acabámos de citar? Para nós, isso é manifestamente impossível. Só esperamos que os atletas e as suas associações, nacionais e internacionais, reajam e permitam controlar o evidente bom negócio em perspectiva… Dinheiro ou valores? Qual a justa medida? Pessoalmente não temos dúvidas.


Texto publicado no «Público» on-line em 22 de Fevereiro de 2015


António Gentil Martins é médico aposentado, licenciado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, tendo integrado a direção da respetiva Associação de Estudantes. Foi chefe de serviço de Cirurgia Pediátrica do Hospital de Dona Estefânia (Lisboa) durante 34 anos, bastonário da Ordem dos Médicos de 1977 a 1986 e presidente da Associação Médica Mundial de 1979 a 1983. Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique desde 1984, recebeu a Grã-Cruz da mesma ordem em 2009. Notabilizou-se a nível mundial pela separação de sete pares de gémeos siameses. Membro da Academia Olímpica de Portugal desde 2008, é atleta olímpico da modalidade de tiro, com participação nos Jogos de Roma, em 1960. Foi campeão nacional de juniores de ténis e campeão de Lisboa de badmínton.

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