Notícia  /  03.08.2018

Na opinião de Trovão do Rosário

Como sabemos, o Homem é herdeiro, portador e transmissor de uma cultura, sendo a cultura de cada tempo o resultado da acumulação dos saberes que foi adequando aos seus desígnios observando as transformações que o tempo transportou. Para tal, utilizou um instrumento, a educação, que lhe permitiu substituir o comportamento instintivo pelo comportamento adquirido, o que lhe facultou a possibilidade de escolher, conscientemente, os princípios e os valores que norteariam a estruturação da sua personalidade e as formas de relacionamento com os outros.

Muito tempo depois, a educação recorreu por sua vez a um instrumento que foi burilando e ao qual atribuiu largas responsabilidades, quer no ensino quer na aprendizagem, a escola. Todavia, com o crescimento da colina dos saberes e com a crescente complexidade destes, cedo concluiu que a escola, por si só, não poderia, ainda que coadjuvada pela família, ser responsabilizada por todas as formas de educação; em larga medida porque a necessidade de transmitir conhecimentos foi apagando a sua missão de estimular a construção de saberes, entrincheirada como ficou por cursos, planos de estudo e programas. O corpo ficou numa zona de penumbra, como ficou o convite à descoberta, ou a valorização da socialização, ou ainda a criação de condições para o desabrochar do eu.

Foi assim progressivamente mitigada a compatibilidade entre o empolamento do conhecimento e a liberdade criadora. Mais recentemente, o advento das novas tecnologias favoreceu o sedentarismo, cerceou meios de relacionamento, limitou o espaço consagrado à descoberta do corpo e dos seus movimentos e colocou na margem mecanismos destinados à dedução.

Passaram já mais de cinco séculos sobre o ensinamento de Montaigne que permanece actual: “ educar não é encher um vaso, é acender uma vela”. A vela de que nos falou, deveria iluminar conhecimentos, valores e princípios moldados pela ética, pela Filosofia,…

Só que a escola em cada dia que passa e pelas razões apontadas tem menos possibilidades de se ocupar de assuntos que não se circunscrevam à transmissão de conhecimentos, pelo que foi alijando parte das suas missões para a educação não formal, muitas vezes mais apetecida por, justamente, não estar balizada; pelas suas características, as actividades físicas logo emergiram e ocuparam espaços e horas antes insuspeitadas. Rapidamente deram origem a uma extensa panóplia de modelos de jogos e desportos, a instituições que brotaram em cidades e aldeias e que, a coberto de competições desportivas, transmitiram códigos de comportamento veiculados por professores e técnicos que se serviram de regras e regulamentos.

E da episteme plantada por razões culturais, sociais, económicas e políticas brotaram formas do Homem se servir destas actividades que, a um tempo, eram agradáveis e formativas.

Foi pois natural que tenha renascido o espírito olímpico, não o herdado directamente de Delfos, Nemeia, Corinto ou … Olimpia, mas o que resultou dos ajustamentos feitos pela doutrina de Coubertin, que rapidamente conheceu uma implantação planetária que nenhuma ideologia ou religião conheceria.

Em diversos países, os aparelhos estatais tiveram o talento e o engenho suficientes para aproveitar os préstimos educativos da cultura olímpica. Noutros, foram estes tristemente ignorados, ou quanto muito, tolerados com condescendente bonomia, como muitas vezes tem sucedido entre nós.

Num tempo em que se agudizam crises sociais que atingem as gerações mais jovens e em que o desporto é palco de conflitos até há pouco ignorados, mais premente se torna a adopção de políticas, rigorosas e exigentes, que sirvam fins formativos, nomeadamente através do estímulo à prática de actividades físicas, promovidas, quer no âmbito da educação formal, quer no âmbito da educação não formal. É com desilusão e alguma perplexidade que assistimos ao mutismo calculista, quase absoluto, de sucessivos governos.

Conhecemos o medo que os dirigentes políticos têem de uma intervenção responsabilizável numa área onde podem colher insatisfações e prejuízos eleitorais; preferem, cuidadosamente, anunciar, de tempos a tempos, a criação de medidas legislativas que, em geral, nada resolvem e para nada servem, tentando assim calar vozes críticas.

De quatro em quatro anos, os governantes que tutelam a área, sem se comprometerem muito, perguntam: quantas medalhas ganhámos nestes Jogos? Para logo recordarem quanto o governo (todos nós) investiu. Logo de seguida, os anéis olímpicos são arrumados numa prateleira, donde só serão retirados…quatro anos depois quando o novo governo precisar de comprar mais medalhas…

Aqui chegados, somos colocados perante uma interrogação: o olimpismo tem futuro?

Obviamente que deverá ter. Poderão os tempos que correm pôr em causa a forma de que se irá revestir, mas os conceitos que o escoram não podem ser menosprezados; bem pelo contrário, devem ser estudados e difundidos criteriosamente, inclusive através do uso das novas tecnologias.

O futuro do olimpismo resultará pois, de uma clara opção: ou, aliciados por fáceis formas de entretenimento, que conduzem à indiferença do encolher de ombros, escolhemos uma renúncia conformista e vogaremos ao sabor de correntes que nos levam para um qualquer lado que não conhecemos, ou, escolhemos o caminho mais difícil, mas mais ambicioso porque é o que serve o homem na sua plenitude e que não dispensará os bordões oferecidos pela cultura.

Por palavras diferentes: o olimpismo terá futuro se servir o homem e se defender os valores e os princípios que são a sua razão de ser.

Para tal, deverá inspirar-se não só na interdisciplinaridade, como na transdisciplinaridade, recolhendo ensinamentos em toda a roda das ciências que Jean Piaget concebeu. Assim poderá também, resistir melhor aos assomos dos bezerros de ouro, interessados nas imagens olímpicas mas nada interessados no espírito olímpico.

Por tudo isto, o êxito dos trabalhos que as diversas estruturas do movimento olímpico – internacionais e nacionais- estão a desenvolver neste sentido, será, em larga medida consequência da lucidez e da coragem com que as tutelas políticas e culturais encarem a importância de um fenómeno inestimável na formação da juventude.

Pelo que, deverão, com rigor, criar condições para que, no sistema educativo seja concedida cidadania ao olimpismo, por exemplo através da inclusão do tema em programas escolares, ainda que não de forma muito extensa mas de modo a que os alunos possam saber o que é o olimpismo e quais os valores que defende..

Sempre foi o olimpismo portador de esperança; cabe-nos, a todos, a responsabilidade de explicar aos mais novos a razão por que o facho olímpico leva a luz a todos os povos e a todos os cantos do mundo. A luz da fraternidade e da cultura.

JULHO 2018

 

Alberto Trovão do Rosário é professor universitário, licenciado pelo Instituto Nacional de Educação Física e doutorado pela Universidade Técnica de Lisboa (Faculdade de Motricidade Humana). Foi diretor-geral do Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis (que antecedeu o Instituto Português da Juventude) e do Ministério da Educação, assessor de dois ministros da Educação e co-fundador do Pólo Universitário de Setúbal da Dinensino (Universidade Moderna). Entre 2004 e 2007 foi também grão-mestre da Grande Loja Regular de Portugal. É membro da AOP desde a sua fundação, em 1986, tendo sido bolseiro à Academia Olímpica Internacional em 1966.

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